quarta-feira, 5 de março de 2014

Que não se dê atenção ao partido da guerra

Tal como sucedeu aqui, a vertigem dos acontecimentos (reais ou veículos de mera desinformação) é de tal ordem que o risco da incorrecção (parcial) do relato é significativo. É o que tornou a acontecer agora com o artigo de Pat Buchanan, ontem publicado, que escolhi divulgar, em versão por mim traduzida.

Mas o meu interesse nesta matéria não é o da crónica de uma eventual guerra a propósito da Ucrânia. É, antes, o de convidar a reflectir sobre uma realidade que é bem mais complexa do que o maniqueísmo habitual propalado pelos políticos e media ocidentais - aqueles a que estamos directamente sujeitos - pretendem fazer passar ao grande público. A esta luz, o artigo de Buchanan, como é de resto habitual no seu autor, convida à análise serena e lúcida e, recorda algumas referências históricas e geográficas que, ainda que elementares, são fundamentais para a interpretação do que se vem passando. Sobretudo, que haja muito cuidado na aceitação acrítica das acusações de violação do "direito internacional" quando elas são esgrimidas por parte de quem age com o estatuto de império incontestado: "We're an empire now, and when we act, we create our own reality. And while you're studying that reality—judiciously, as you will—we'll act again, creating other new realities, which you can study too, and that's how things will sort out. We're history's actors ... and you, all of you, will be left to just study what we do". Ainda anteontem morreram mais 97 pessoas no Iraque.

Ainda que naturalmente dirigido ao público norte-americano, é aos cidadãos dos países europeus que ele mais interessará. Afinal de contas, o epicentro das duas guerras mundiais aconteceu aqui no Velho Continente.

ACTUALIZAÇÃO: mais uma "pequena surpresa" (transcrição parcial aqui) a juntar a esta outra.
Por Patrick J. Buchanan
4 de Março de 2014

Que não se dê atenção ao partido da guerra! (Tune Out the War Party!)

A decisão de Vladimir Putin de enviar tropas russas para a Crimeia, pôs os nossos belicosos falcões a respirar fogo. A russofobia está desvairada e os artigos de opinião fervem de indignação.

Barack Obama deveria abstrair-se de tudo isto e reflectir sobre o modo como os presidentes ao longo da Guerra Fria lidaram com Moscovo a propósito de confrontos muito mais graves.

Patrick J. Buchanan
Quando as divisões de tanques do Exército Vermelho esmagaram os combatentes húngaros da liberdade em 1956, matando 50 mil deles, Eisenhower não levantou um dedo. Quando Khrushchev construiu o Muro de Berlim, JFK foi a Berlim e proferiu um discurso.

Quando as tropas do Pacto de Varsóvia esmagaram a Primavera de Praga em 1968, LBJ não fez nada. Quando Moscovo ordenou ao general Wojciech Jaruzelski que esmagasse o Solidariedade, Ronald Reagan recusou-se a colocar Varsóvia numa situação de isolamento.

Estes presidentes não viram nenhum interesse vital dos EUA ameaçado nessas acções soviéticas, por brutais que tivessem sido. Sentiram que o tempo estava do nosso lado durante a Guerra Fria. E a história veio a dar-lhes razão.
Qual é o interesse vital dos EUA na Crimeia? Zero. De Catarina, a Grande, a Khrushchev, a península pertenceu à Rússia. O povo da Crimeia é, em 60%, composto de etnia russa.

E caso a Crimeia venha a votar pela sua separação da Ucrânia, qual é o nosso fundamento moral para lhes negar esse direito quando bombardeámos a Sérvia durante 78 dias para provocar a secessão do Kosovo?

Na Europa, desde o fim da Guerra Fria que se verificou um processo de autonomização das nações. Com o fim da União Soviética, do que eram anteriormente a Checoslováquia e a Jugoslávia, resultaram 24 nações. A Escócia irá a votos para decidir sobre a sua secessão este ano. A Catalunha poderá ser a seguinte.

Contudo, hoje, vemos o Wall Street Journal a descrever o envio de soldados russos para ocupar os aeródromos na Ucrânia como constituindo uma "blitzkrieg", que "traz a ameaça de guerra ao coração da Europa", embora a Crimeia se situe a leste do que costumávamos designar por Europa Oriental.

O Journal pretende que o porta-aviões George H. W. Bush seja enviado para o Mediterrâneo Oriental e que navios de guerra da Sexta Frota dos EUA sejam enviados para o Mar Negro.

Mas porquê? Nós não temos nenhuma aliança que nos exija que lutemos contra a Rússia pela Crimeia. Nós não temos lá nenhum interesse vital. Porquê, então, enviar uma flotilha a não ser para armar em duros, contribuir para a escalada da crise e para o risco de um confronto?

O The Washington Post classifica o movimento de Putin como um "acto evidente de agressão armada no centro da Europa". A Crimeia está no centro da Europa? Estamos a pagar um preço pela nossa incapacidade de ensinar geografia.

O Post instiga igualmente ao lançamento de um ultimato a Putin: Saiam da Crimeia, pois caso contrário imporemos sanções que poderiam "afundar o sistema financeiro russo".

Embora fosse possível que nós [EUA] e a UE pudéssemos prejudicar a economia da Rússia e fazer derrubar os seus bancos, será isso sensato? E se Moscovo responde cortando o crédito à Ucrânia, exigindo o pagamento das dívidas de Kiev, recusando-se a comprar os seus produtos e a aumentar o preço do petróleo e do gás?

Isto deixar-nos-ia, à UE e a nós, com a responsabilidade por um caso insolúvel de uma nação com a dimensão da França e quatro vezes mais populosa que a Grécia.

Estarão Angela Merkel e a UE prontas para assumir essa carga, depois de terem resgatado os PIIGS - Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha?

Se empurrarmos a Rússia até ao limite, para onde julgaremos que Putin se irá dirigir, senão para a China?

Isto não é um apelo para que ignoremos o que está a suceder, mas antes para compreender e agir no interesse de longo prazo dos Estados Unidos.

As acções de Putin, apesar de perturbadoras, não são irracionais.

Depois de ter vencido a competição pela Ucrânia para que esta aderisse à sua união aduaneira, ao pôr uma tímida UE "fora do jogo" com uma oferta em dinheiro de 15 mil milhões de dólares, para além de petróleo e gás subsidiados a Kiev, ele assistiu ao roubo da sua vitória.

As multidões juntaram-se em Maidan Square, ergueram barricadas, enfrentaram a polícia com cassetetes e cocktails Molotov, forçaram o presidente eleito Viktor Yanukovych a capitulações sucessivas e, em seguida, derrubaram-no, expulsaram-no do país, destituíram-no, tomaram o  parlamento, restringiram a utilização da língua russa, e declararam que a Ucrânia fazia parte da Europa.

Para os americanos isto pode parecer a democracia em acção. Para Moscovo, o aspecto é o de um Putsch da Cervejaria [também conhecido por Putsch de Munique - NT] coroado de êxito, quando até mesmo os jornalistas ocidentais admitiram a existência de neo-nazis na Maidan Square.

Na Crimeia e no leste da Ucrânia, aqueles de etnia russa assistiram ao derrube de um presidente que eles elegeram e de um partido que apoiaram substituídos por partidos e políticos hostis a uma Rússia com os quais têm profundos e ancestrais laços históricos, religiosos e culturais.

E todavia, Putin está a assumir um sério risco. Se a Rússia anexar a Crimeia, nenhuma  nação importante reconhecerá essa anexação como legítima, e poderia perder para sempre o resto da Ucrânia. Se vier a "fatiar" o leste da Ucrânia anexando-o, poderá desencadear uma guerra civil e uma segunda Guerra Fria.

O tempo não está aqui necessariamente do lado de Putin. John Kerry poderá ter razão quanto a isso.

Mas para os uivos belicosos, trazer a Ucrânia e a Geórgia para a NATO, daria a essas nações, bem no interior do espaço russo, o tipo de garantias de auxílio militar [vertidas em tratados de "segurança mútua" - NT] que o Kaiser deu à Áustria em 1914 e os ingleses deram aos coronéis polacos em Março de 1939.

Essas garantias de ajuda militar guerra conduziram a duas guerras mundiais, que os historiadores ainda poderão vir a concluir terem constituído os golpes mortais na civilização ocidental.

1 comentário:

floribundus disse...

nunca conheci ditaduras de civis

Putin e Medvedev são meros representantes dos generais que governam a Federação Russa

hussein ladra mas não morde