terça-feira, 17 de março de 2015

Quem de facto combate o Estado Islâmico no terreno

Foram as constantes interferências de ordem externa que transformaram grande parte do Médio Oriente no atoleiro letal que hoje conhecemos. Primeiro, pelo retalhar da história e geografia milenar através da criação de fronteiras totalmente arbitrárias após o fim do império Otomano. Depois, porque o controlo da incrível riqueza em petróleo da zona tudo justificava. Um dos marcos desse intervencionismo foi o golpe que em 1953 depôs o democraticamente eleito Mohammed Mossadegh no Irão e instalou no trono Reza Pahlavi (uma "teoria da conspiração" finalmente reconhecida pela CIA, 60 anos depois). Em 1979, com a fuga do Xá e a instalação de um regime para-teocrático, o Irão passou a ser demonizado, guerreado, ostracizado, e sujeito a pesadas sanções económicas. Com o apoio explícito dos EUA - logístico, militar e de informações - Saddam Hussein atacou o Irão (também com armas químicas que, como a CIA igualmente confirmaria, eram do perfeito conhecimento americano), daí resultando uma guerra que durou oito anos (1980-1988) e causou 400 mil mortos. Com George W. Bush, o Irão foi catalogado como pertencente a um "eixo do mal" que tem persistido até hoje, reforçado com novos membros. Como os neocons nunca esconderam, o Irão é o "grande prémio".

Não deixa portanto de ser irónico que da 2ª guerra do Iraque tenha resultado um fortalecimento de facto da posição estratégica do Irão, ou, talvez melhor, do Islão xiita. Como não deixa de ser do domínio do factual que são os xiitas, e em particular Assad (aqui, numa entrevista recente à RTP), quem de facto tem combatido no terreno essa entidade difusa que dá pelo nome de Estado Islâmico bem como as diversas declinações da Al-Qaeda na região como é o caso da Frente al Nusra. É esta a leitura, lúcida e serena como é habitual, que Pat Buchanan faz da situação actual ao deflectir a retórica tonitruante dos neocons e de Netanyahu, também preocupado com a sua própria sobrevivência no poder em Israel, que tudo estão a fazer para torpedear as negociações em curso com o Irão relativas ao seu programa nuclear.

10 de Março de 2015
Por Patrick J. Buchanan


Patrick J. Buchanan
América, temos um problema.

No sangrento e caótico Médio Oriente, salvo raras excepções como a dos curdos, os nossos amigos ou não conseguem ou não querem combater.

O Exército Livre da Síria claudicou. As forças do movimento Hazm na Síria, armadas pelos Estados Unidos, desmoronaram-se depois de serem alvo da perseguição pela Frente al Nusra. O exército iraquiano, treinado e equipado por nós, fugiu de Mosul em grande debandada até Bagdad. Os turcos poderiam aniquilar o ISIS na Síria, mas não irão combater. A Arábia Saudita e os países árabes do Golfo enviaram zero militares para combater o ISIS. Ficaram-se por um punhado de ataques aéreos.

Consideremos agora o que os nossos velhos inimigos já fizeram e estão a fazer.
Há quatro anos o Hezbollah e o Irão apoiam o exército sírio de Assad e conseguiram pôr o ISIS e a Frente al Nusra na defensiva nos arredores de Alepo. O Irão e a milícia xiita
sua aliada no Iraque estão a lutar contra o ISIS pela disputa de Tikrit. Apoiados pelo Hezbollah, os rebeldes Houthi capturaram a capital do Iémen e estão a combater a Al-Qaeda na Península Arábica - a ameaça terrorista número um para o território dos EUA.

Enquanto o Irão e os seus aliados batalham contra a Al-Qaeda e o ISIS, a Turquia e os nossos aliados árabes simulam combatê-los na melhor das hipóteses e, na pior, são seus colaboradores. Como explicar isto? Não é difícil. Os xiitas, uma minoria religiosa no mundo muçulmano - o Hezbollah, o regime de Assad, Bagdad, Teerão - vêem o ISIS como uma ameaça mortal e estão dispostos a lutar para matar o monstro.

Os nossos aliados sunitas não irão entrar em combate contra o ISIS porque isso iria fazer deles aliados do Irão e dos xiitas, a quem temem ainda mais. Os nossos amigos sunitas pretendem que a América aniquile o ISIS e a Al-Qaeda para depois esmagar o Hezbollah, a Síria e o Irão. Mas por que razão é do nosso interesse enviar tropas americanas de volta a essas guerras?

Imagem daqui

Estará a América mais ameaçada que os nossos aliados árabes? Em vez de escutar aliados que são não-combatentes, devíamos olhar com atenção para o Médio Oriente. A quem pertence o futuro? E com o que é que podemos viver?

Os republicanos querem dar um cheque em branco a Obama e aos futuros presidentes para combater o ISIS e a Al-Qaeda onde quer que seja e para todo o sempre. E pretendem que os Estados Unidos lidem com o Irão como teríamos lidado com a Alemanha nazi assim tivesse Hitler prestes a conseguir a bomba.

Mas se a plataforma eleitoral do Partido Republicano adoptar a linha neocon-Netanyahu, segundo a qual não devemos apenas combater o ISIS e a Al-Qaeda mas também o Irão e a Síria, o partido porá em perigo a obtenção de melhores perspectivas eleitorais para 2016.

Os americanos não querem outra guerra. E se John Kerry voltar para casa com um acordo sobre o programa nuclear do Irão, é provável que os americanos venham a rejeitar um partido que é visto como estando a tentar torpedear esse acordo, quando a alternativa é a guerra com o Irão.

Não sabemos exactamente o que está no acordo de Kerry, mas o que foi revelado até agora não é motivo para pânico ou histeria. Embora Israel disponha de 200 bombas atómicas, o Irão não produziu um único grama de urânio enriquecido a 90% (o necessário para uma bomba). Desde que as negociações se iniciaram, o Irão diluiu todo o seu urânio enriquecido a 20% e interrompeu a sua produção. Teerão está disposta a reduzir as suas centrifugadoras em operação em um terço.

Há agora inspectores e câmaras em todas as instalações nucleares do Irão. A fábrica de água pesada em Arak, que iria produzir plutónio, foi interrompida. A central de reprocessamento que seria necessária para extrair material de qualidade necessária para uma bomba não foi sequer iniciada.

As agências de inteligência dos EUA, em 2007 e 2011, declararam, com elevada confiança, que o Irão não tem um programa activo de fabrico de armas nucleares. Ao Enquanto Bibi Netanyahu diz que o Ayatollah, através do Twitter, referiu que Israel tem que ser "aniquilado", o mesmo Ayatollah emitiu uma fatwa a sentenciar o Irão a nunca produzir armas nucleares.

Não podemos confiar no Irão, dizem-nos. Correcto. Nem devemos fazê-lo, como a história já provou. Moscovo traiu o acordo SALT I de Nixon ao substituir os seus mísseis ligeiros SS-11 de uma só ogiva pelos pesados SS-19 de múltiplas ogivas.

Mas como Meir Dagan, ex-chefe da Mossad assinala, se o Irão nos vier a enganar numa das suas instalações, iremos dar-nos conta, e levaria um ano até que Teerão pudesse produzir suficiente urânio altamente enriquecido para começar por testar uma bomba. Tempo de sobra para abastecer de combustível os B-2.

Uma outra questão, muito raramente colocada, é a seguinte: por que razão iria o Irão testar e construir uma bomba nuclear, quando isso desencadearia uma corrida às armas nucleares por todo o Médio Oriente e iria colocar o Irão perante o perigo mortal de ser esmagado pelos Estados Unidos, ou por Israel mediante um ataque preventivo?

Neste momento, o Hezbollah domina o Líbano. Assad está a ganhar terreno na Síria.
Graças a "W", o Iraque é hoje um aliado do Irão, já não o inimigo mortal dos dias de Saddam. Os Houthi controlam Sanaa. A maioria xiita no Bahrein, onde a 5ª Esquadra dos EUA tem a sua base, irá um dia dominar este estado do Golfo. E os xiitas do nordeste rico em petróleo da Arábia Saudita erguer-se-ão um dia contra Riade.
Porquê construir uma bomba? Porquê entrar em guerra contra uma superpotência com armas nucleares quando está tudo a correr de feição?

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