sábado, 30 de maio de 2015

O colesterol passou a ser uma coisa boa

Apesar de uma episódica e já longínqua passagem pela Faculdade de Medicina de Lisboa, esta não é uma matéria que, enquanto leitor, siga de forma sistemática. Não obstante, creio detectar muitas semelhanças numa maleita que, digamos, é transversal a domínios aparentemente tão distintos como a medicina, o "aquecimento global" (se preferirem, "alterações climáticas") e, área da minha formação, a economia (na versão mercantilista e keynesiana vigente). Refiro-me à doença infantil do cientismo empiricista pela qual a preguiça e o "massajar" estaticista, quando não a fraude pura e simples, veio substituir a verdadeira ciência - o estudo, identificação e explicitação de relações de causa e efeito. É certo que não pode haver causalidade sem que exista correlação, mas a tentação de fazer "ciência" à custa da detecção de correlações, reais ou forjadas, é avassaladora. O artigo que vos proponho hoje é disso revelador. Nele se fala do embuste do consenso científico e da ira com que o establishment reage perante quem o ouse afrontar. Quando o dogma se instala, com o beneplácito e, logo depois, com o patrocínio estatal, é dificílimo quebrá-lo - a ciência dá lugar ao aparelhismo burocrático que,por natureza, nunca reconhecerá a admissão do erro e tenderá a perpetuá-lo até ao limite. Parece-me ser um bom complemento ao vídeo de Freeman Dyson que se volta a recomendar.

Um excelente fim-de-semana!

25 de Maio de 2015
Por Matt Ridley


Se estiver a ler isto antes do pequeno-almoço considere por favor a hipótese de comer um ovo. Está iminente a aceitação oficial pelo governo dos EUA de um parecer no sentido de, sem mais, retirar o colesterol da sua lista de "nutrientes preocupantes". Governo que pretende ainda "desenfatizar" a gordura saturada, constatada "a falta de evidências da sua ligação à doença cardiovascular".

Matt Ridley
Este é um ponto de viragem poderoso, ainda que protegido por ressalvas, e que há muito era devido. Havia anos que as provas se acumulavam no sentido de concluir que a ingestão de colesterol não provoca níveis altos de colesterol no sangue. Uma reavaliação levada a cabo em 2013 pela Associação Americana do Coração e pelo Colégio Americano de Cardiologia, não encontrou "nenhuma relação significativa entre o consumo do colesterol alimentar e o colesterol no soro [sangue]".

O colesterol não é um veneno vil, mas um ingrediente essencial à vida, que confere flexibilidade às membranas das células animais e que é a matéria-prima utilizada na síntese de hormonas como a testosterona e o estrogénio. O fígado produz, por si só, a maior parte do colesterol encontrado no sangue, e faz o ajustamento face ao que se ingira, razão pela qual não é a dieta que determina os níveis de colesterol no sangue. Reduzir o colesterol no sangue através da alteração da dieta é algo de praticamente impossível.

Também não existem evidências fortes de que níveis altos de colesterol no sangue provoquem aterosclerose, doença cardíaca coronária ou uma menor esperança de vida. Nem, sequer, constitui um factor de risco em pessoas que já tenham sofrido enfartes. Em pessoas idosas - ou seja, aquelas em que ocorre a maioria dos ataques cardíacos - quanto mais baixo for o colesterol, maior é o risco de morte. O mesmo se passa com as crianças.

Desde o início, os estudos que associaram a ingestão de colesterol e gorduras saturadas de origem animal às doenças cardiovasculares não estavam apenas errados, como estavam tingidos pelo escândalo.

Nos anos 1950, um surto de doenças cardíacas nos homens americanos (provavelmente causado na sua maioria pelo tabagismo) levou o fisiologista Ancel Keys a formular a hipótese de que a causa estaria no colesterol alimentar. Quando ela pareceu não se confirmar, agulhou à gordura saturada como sendo a causa dos altos níveis de colesterol no sangue. Para sustentar o seu ponto de vista, recorreu à omissão de dados contraditórios, deslocou pontos em gráficos e desprezou factos inconvenientes. Depois, conseguiu trazer para o seu lado grandes instituições de caridade e agências estatais e intimidou os seus críticos ao silêncio.

O seu estudo mais famoso, o "Estudo dos Sete Países", tinha começado por ser muito mais abrangente; depois, ele retirou 16 países da amostra para conseguir obter uma correlação significativa. Voltassem a ser incluídos, e a correlação desapareceria. Escondido nos seus dados está o facto de que as pessoas em Corfu e Creta (no mesmo país) comerem as mesmas quantidades de gorduras saturadas, mas os cretenses falecerem 17 vezes mais frequentemente de ataques cardíacos.

Na década de 1970, o famoso Framingham Heart Study tropeçou no facto de que as pessoas com níveis elevados de colesterol de idade superior a 47 anos (muito antes de a maior parte das pessoas sofrerem ataques cardíacos) viverem mais tempo do que aquelas com baixos níveis de colesterol, e que aqueles cujo colesterol baixou enfrentavam maior risco de morte. Mas o consenso ignorou isto e prosseguiu em diante.

Quando foi desafiada a mostrar evidências em favor da orientação pelo baixo colesterol, a profissão médica e científica tendeu a argumentar recorrendo à autoridade - apontando para as directrizes da Organização Mundial de Saúde ou para quaisquer outros compêndios oficiais, e a dizer para "consultar lá as referências". Mas aquelas referências reconduziam a Keys e Framingham e a outros dossiers duvidosos. E é assim que a má ciência é branqueada sob a forma de dogma. "Um dos grandes mandamentos da ciência é 'Desconfiai dos argumentos de autoridade!'", afirmou Carl Sagan.

A certo ponto, a profissão médica começou a distinguir entre o colesterol e as proteínas que ele transportava, emergindo daí uma distinção entre as "boas" lipoproteínas de alta densidade, e as "más", de baixa densidade. As placas de gordura nas artérias são parcialmente feitas de colesterol, é verdade, mas elas formam-se nas cicatrizes e irregularidades causadas por outros problemas: tabagismo, infecções, lesões, idade. As lipoproteínas e o colesterol fazem parte do kit de reparação. Não se vai culpar um carro de bombeiros pela ocorrência de um fogo. Temos vindo a confundir efeito com a causa.

A batalha ainda não terminou. Os médicos e cientistas que há 20 anos vêm insistindo em como o imperador colesterol vai nu, e que as dietas pobres em hidratos de carbono e ricas em gordura são mais seguras, há tanto tempo que se têm visto condenados ao ostracismo, como se tratassem de charlatães e defensores da planitude da Terra, que o vício irá custar a desaparecer. Pessoas como Uffe Ravnskov na Suécia, autor de Ignore the Awkward.: How the Cholesterol Myths Are Kept Alive e Malcolm Kendrick, um clínico geral em Macclesfield, autor de The Great Cholesterol Con e Doctoring Data, não serão em breve acolhidos no regresso ao redil. Um consenso científico pode ser muito intolerante para com os heréticos.

Não obstante, o establishment médico, também neste caso, está a afastar-se em bicos de pés da sua recomendação anterior quanto a evitar ingerir colesterol e gordura saturada. Está a cobrir a sua retirada recorrendo a uma cortina de fumo, ao redireccionar a sua artilharia para as gorduras processadas (com melhores argumentos), ou para o açúcar. É isto que está por detrás de toda a conversa acerca dos perigos do açúcar nos dias de hoje - uma enorme alteração de paradigma, bem afastado da dieta de baixos teores de gordura e colesterol. Eu não estou prestes a afirmar que a recomendação quanto ao açúcar irá também vir a revelar-se errada.

Na realidade, as evidências de que a insistência em dietas pobres em gorduras levou as pessoas a ingerir mais hidratos de carbono, e que isso conduziu à explosão da obesidade e da diabetes, parece bem forte - até ver. Afinal, a principal via pela qual o corpo deposita gordura é através do seu fabrico a partir do excesso de açúcar existente no fígado. Mas por que razão começou o consumo de carboidratos a aumentar tão rapidamente nos anos 1960? Pelo menos parcialmente, devido à recomendação para evitar a carne e o queijo. A obesidade e a diabetes são o preço que pagamos pelo tremendo erro havido no entendimento da gordura e do colesterol.

E que dizem a uma completa e detalhada investigação para indagar como pôde a profissão médica e científica ter cometido uma tão épica asneira e provocado tanto sofrimento nas pessoas? Considerem-se não apenas os danos que foram infligidos à vida das pessoas por força do aconselhamento errado, mas também ao sustento dos produtores de leite, de carne de bovino, e de ovos (faço aqui uma declaração de interesses enquanto um muito pequeno produtor de ovos não calibrados). O que é que contém mais açúcar: uma maçã ou um ovo?

Mas e o que dizer das estatinas? Nos homens elas reduzem o colesterol e previnem as doenças cardíacas. É verdade, mas a conexão não é necessariamente causal. As estatinas provocam uma série de outros efeitos, incluindo a redução da inflamação, que pode ser a razão por que previnem os enfartes. Há, também, cépticos das estatinas que as acham desprovidas de valia devido aos seus efeitos secundários; e que das evidências a seu favor há demasiadas que são provenientes da indústria farmacêutica.

Gostamos de pensar que o apego obstinado a dogmas era um hábito dos médicos de há séculos atrás, mas ele ainda persiste. A medicina precisa de melhorar os seus processos de mudança de entendimento.

2 comentários:

LV disse...

Caro Eduardo,

A introdução que faz ao artigo de Ridley conduz-me à consideração do "velho" problema da indução formulado por Hume. Que a indução não se encontra justificada pela razão ou pela observação. No primeiro caso, porque assume a própria indução para justificar as suas previsões (petição de princípio). No caso das observações, pressupõe-se a uniformidade dos fenómenos na Natureza.
A operar mais fundo em mim, aquando da leitura da tradução do texto de Ridley, está a descrição do trabalho e progresso científicos na "Estrutura das Revoluções Científicas" de Kuhn. Não partilhando da sua visão "socializada" da ciência e do seu progresso, tenho de reconhecer que a análise que Kuhn leva a cabo na "Estrutura" descreve muito adequadamente o que passa por ciência aos olhos, pelo menos, do indivíduo comum-não-especialista.
As "verdades" que Ridley assinala como nascendo da manipulação de dados e da hegemonia de algumas escolas e investigadores correspondem às formulações e crenças vitais de cada paradigma. Por isso, quando surgem casos problemáticos (anomalias) que esse paradigma não explica, a primeira reacção é afastá-los para a periferia do pensamento e da reflexão.
O que acaba por ser disparatado, já que sendo crescentes os casos problemáticos (não obstante os entorses perceptivos - olha, olha!!! - e estatísticos), eles representarão o fim do paradigma pela erosão daquelas crenças e pressupostos centrais e identitários desse paradigma. É uma questão de tempo, de facto.
O que me choca - e aqui afastando-me de Kuhn - é que se caucione como prática natural da ciência a anulação da dissensão, a perseguição e o ostracismo a que se votam teorias concorrentes. Ou visões do mundo diferentes, diria Kuhn.
A cereja no topo do bolo é a admissão (Kuhn, mais uma vez) de que talvez a ciência não seja totalmente objectiva, nem tenha a verdade como fim.
Que bem nos mostram estes exemplos de Ridley que a descrição de Kuhn é certeira. Mesmo se não concordamos com os seus pressupostos.

Obrigado pelo desafio.
Excelente fim-de-semana também para si.
LV

Eduardo Freitas disse...

Caríssimo LV,

Absolutamente de acordo. Tudo isto representa, no plano da realidade sucessivamente reiterada no nosso tempo, a "vitória" da perspectiva de Kuhn sobre o falsificacionismo de Popper que, na retórica, nortearia a evolução moderna do progresso científico (pelo menos nas ciências exactas). A burocratização da ciência resultante da maciça intervenção estatal, e a consequente disputa pela fatia orçamental a "bem da ciência", arrastam consigo, diria que inevitavelmente, estes fenómenos vis que afectam profundamente o carácter (que já foi?) nobre da ciência.

Recordo-me da história do pensamento económico de Rothbard, que infelizmente já não pôde completar, onde ele demonstra, com a habitual insuperável clareza, a possibilidade real da involução científica (no caso, no domínio económico). E Rothbard, um investigador tenaz e de um ecletismo ímpar no que respeita às fontes que se socorria, também encontra em Kuhn a explicação para essa possibilidade real.

A perseguição da verdade ou, pelo menos, a denúncia da mentira, é uma tarefa de cada um de nós relativamente à qual nunca poderemos baixar a guarda.

Votos reiterados de um bom fim-de-semana!

Abraço!

Eduardo